Não existe intervenção militar constitucional

Com o avanço da greve dos caminhoneiros, o tema da “intervenção militar constitucional” , com essa grafia, voltou à voga. Já postei sobre isso em 2015, mas agora, três anos depois, faz-se necessário tratar do assunto novamente. Primeiro, o termo “intervenção militar constitucional” é equivocado. Do ponto de vista jurídico e legal, tal intervenção não existe. O nome correto é golpe de estado militar.

O Brasil é considerado uma democracia jovem, com o processo de redemocratização iniciado em 1985 – com a eleição indireta de Tancredo Neves, cuja consolidação se dá em 1989, com eleições diretas para presidência da república, a primeira desde 1960. A democracia brasileira ganhou impulso, garantias e instrumentos legais, econômicos e sociais com a promulgação da Constituição da República de 5 de outubro de 1988. É importante ressaltar que qualquer solução que se queira legítima para obter e exercer o poder tem de ser prevista e regulada na Constituição de 1988 e nas leis infraconstitucionais da república. Fora disso, temos um golpe de estado, pouco importando o nome que se dê ou o verniz que se queira aplicar.

Não está prevista na CF/1988 nenhum tipo de intervenção militar que apoie ou regulamente, ou que operacionalize mudanças de governo em qualquer esfera da República. As formas previstas constitucionalmente de intervenção são aquelas reguladas pelos artigos 34 e 35, CF/1988, que tratam, respectivamente, da intervenção da União nos estados da federação e no Distrito Federal e da intervenção da unidade federativa em municípios. Em ambos os casos, o objetivo da intervenção é garantir as instituições legais e reestabelecer a normalidade jurídica e social. Nenhum dos dois artigos pretende regular troca de governo federal, estadual ou municipal, ainda mais fora dos institutos eleitorais normais.

As intervenções previstas materializam-se por decreto do chefe do Poder Executivo – o presidente da República -, o qual deverá ser aprovado pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 49, inciso IV, CF/1988. Nenhum dos dois institutos legais permite depor governantes eleitos legalmente, nos termos da lei eleitoral. Existem ainda dois outros institutos legais com foco na manutenção das estruturas republicanas em tempos extraordinários, a saber: o Estado de Defesa e o Estado de Sítio. A sede legal dos dois títulos se dá nos artigos 136 a 139, CF/1988.

O ESTADO DE DEFESA tem por objetivo preservar ou reestabelecer a ordem pública ou a paz social (ou ambas), in verbis, “ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.” (CF/1988, art. 136). O Estado de Defesa exige, ainda, que o local no qual se aplica seja restrito e determinado. Ou seja, o decreto que instaura o Estado de Defesa deve especificar o local ao qual o mesmo se aplica e restringir esse local com claras especificações delimitatórias.

O ESTADO DE SÍTIO, por sua vez, tem por objetivo atuar em casos gravíssimos, tais como:
I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
(Incisos I e II, art. 137, CF/1988)

No entanto, nenhum dos dois dispositivos trata de sucessão, governo, chefia de poderes constitucionais ou qualquer questão relativa a eleições, posse, governo e quetais.

Como nos casos previstos de intervenção, ambos institutos precisam ser aprovados pelo Congresso Nacional. Se o Congresso não estiver reunido no momento, será preciso convocá-lo extraordinariamente, fulcro no artigo 57, § 6º, inciso I, conjugado com o artigo 136, § 5º, CF/1988.

Via de regra, se apela ao art. 142, CF/1988, para embasar a falácia de que existiria uma “intervenção militar” autorizada pela Constituição. Nada mais falso. O trecho em especial é o seguinte: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Este artigo estabelece o papel das Forças Armadas (FA): defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, garantia da lei e da ordem.

Ora.

As FA têm como comandante supremo o Presidente da República, por força expressa do artigo artigo 84, inciso XIII. Desse modo, depor seu comandante supremo, contra sua ordem, é uma insubordinação, uma ilegalidade e ação contrária à Constituição. Também é importante notar que não há autorização na norma constitucional para que as FA interfiram em processos políticos, tampouco havendo permissão legal para que o povo convoque quaisquer forças militares para tanto. As três forças militares federais estão sob comando direto e absoluto da Presidência da República e, portanto, não podem se voltar contra ela, pelo menos não constitucionalmente. Um movimento nesse sentido seria uma ruptura do comando constitucional e da ordem jurídica. A essa ruptura dá-se o nome de Golpe de Estado, constituindo-se uma agressão ao Estado de Direito, implementando-se um estado de exceção.

Infraconsitucionalmente, a novidade foram as operações de Garantia de Lei e Ordem (GLO), previstas no art. 142, CF/1988, regulamentadas pela Lei Complementar nº 97/1999 e pelo Decreto nº 3.897/2001. O Exército – a Força Terrestre – poderá ser utilizado em operações de Garantia de Lei e Ordem, com base no art. 142, CF/1988, apenas por determinação expressa do Presidente da República, sede na Lei Complementar Nº 97/1999 e Decreto nº 3.897/2001. No parágrafo 1º do art. 15, LC 97/99, fixa-se a competência do Presidente da República para a tomada de decisão de emprego das Forças Armadas, seja por iniciativa própria ou atendendo pedido de qualquer dos poderes constitucionais, através do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Poder Judiciário, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados, pelo Poder Legislativo. Em seguida, o Ministro da Defesa irá determinar o emprego do Exército em operação de âmbito interno. Base no art. 15, §2º, LC 97/99, a atuação das Forças Armadas na operação de Garantia de Lei e Ordem deve ocorrer de acordo com as diretrizes determinadas no ato do presidente da República.

Afora essas previsões legais, não há outros instrumentos dentro do Estado de Direito que regulamente uso de Forças Armadas para intervenções ou operações de qualquer natureza em território nacional.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro : exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Decreto no 3.897. 3.897. . 24 ago. 2001.
Lei Complementar 97. 97. . 9 jun. 1999.
SARAIVA, Wellington Cabral. “Intervenção militar constitucional”
SILVA, Fernando Carlos Santos Da. Aspectos legais do emprego do exército na garantia da lei e da ordem. Âmbito Jurídico, [s. l.], v. IX, n. 30, 2016.