Não existe intervenção militar constitucional

Com o avanço da greve dos caminhoneiros, o tema da “intervenção militar constitucional” , com essa grafia, voltou à voga. Já postei sobre isso em 2015, mas agora, três anos depois, faz-se necessário tratar do assunto novamente. Primeiro, o termo “intervenção militar constitucional” é equivocado. Do ponto de vista jurídico e legal, tal intervenção não existe. O nome correto é golpe de estado militar.

O Brasil é considerado uma democracia jovem, com o processo de redemocratização iniciado em 1985 – com a eleição indireta de Tancredo Neves, cuja consolidação se dá em 1989, com eleições diretas para presidência da república, a primeira desde 1960. A democracia brasileira ganhou impulso, garantias e instrumentos legais, econômicos e sociais com a promulgação da Constituição da República de 5 de outubro de 1988. É importante ressaltar que qualquer solução que se queira legítima para obter e exercer o poder tem de ser prevista e regulada na Constituição de 1988 e nas leis infraconstitucionais da república. Fora disso, temos um golpe de estado, pouco importando o nome que se dê ou o verniz que se queira aplicar.

Não está prevista na CF/1988 nenhum tipo de intervenção militar que apoie ou regulamente, ou que operacionalize mudanças de governo em qualquer esfera da República. As formas previstas constitucionalmente de intervenção são aquelas reguladas pelos artigos 34 e 35, CF/1988, que tratam, respectivamente, da intervenção da União nos estados da federação e no Distrito Federal e da intervenção da unidade federativa em municípios. Em ambos os casos, o objetivo da intervenção é garantir as instituições legais e reestabelecer a normalidade jurídica e social. Nenhum dos dois artigos pretende regular troca de governo federal, estadual ou municipal, ainda mais fora dos institutos eleitorais normais.

As intervenções previstas materializam-se por decreto do chefe do Poder Executivo – o presidente da República -, o qual deverá ser aprovado pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 49, inciso IV, CF/1988. Nenhum dos dois institutos legais permite depor governantes eleitos legalmente, nos termos da lei eleitoral. Existem ainda dois outros institutos legais com foco na manutenção das estruturas republicanas em tempos extraordinários, a saber: o Estado de Defesa e o Estado de Sítio. A sede legal dos dois títulos se dá nos artigos 136 a 139, CF/1988.

O ESTADO DE DEFESA tem por objetivo preservar ou reestabelecer a ordem pública ou a paz social (ou ambas), in verbis, “ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.” (CF/1988, art. 136). O Estado de Defesa exige, ainda, que o local no qual se aplica seja restrito e determinado. Ou seja, o decreto que instaura o Estado de Defesa deve especificar o local ao qual o mesmo se aplica e restringir esse local com claras especificações delimitatórias.

O ESTADO DE SÍTIO, por sua vez, tem por objetivo atuar em casos gravíssimos, tais como:
I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
(Incisos I e II, art. 137, CF/1988)

No entanto, nenhum dos dois dispositivos trata de sucessão, governo, chefia de poderes constitucionais ou qualquer questão relativa a eleições, posse, governo e quetais.

Como nos casos previstos de intervenção, ambos institutos precisam ser aprovados pelo Congresso Nacional. Se o Congresso não estiver reunido no momento, será preciso convocá-lo extraordinariamente, fulcro no artigo 57, § 6º, inciso I, conjugado com o artigo 136, § 5º, CF/1988.

Via de regra, se apela ao art. 142, CF/1988, para embasar a falácia de que existiria uma “intervenção militar” autorizada pela Constituição. Nada mais falso. O trecho em especial é o seguinte: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Este artigo estabelece o papel das Forças Armadas (FA): defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, garantia da lei e da ordem.

Ora.

As FA têm como comandante supremo o Presidente da República, por força expressa do artigo artigo 84, inciso XIII. Desse modo, depor seu comandante supremo, contra sua ordem, é uma insubordinação, uma ilegalidade e ação contrária à Constituição. Também é importante notar que não há autorização na norma constitucional para que as FA interfiram em processos políticos, tampouco havendo permissão legal para que o povo convoque quaisquer forças militares para tanto. As três forças militares federais estão sob comando direto e absoluto da Presidência da República e, portanto, não podem se voltar contra ela, pelo menos não constitucionalmente. Um movimento nesse sentido seria uma ruptura do comando constitucional e da ordem jurídica. A essa ruptura dá-se o nome de Golpe de Estado, constituindo-se uma agressão ao Estado de Direito, implementando-se um estado de exceção.

Infraconsitucionalmente, a novidade foram as operações de Garantia de Lei e Ordem (GLO), previstas no art. 142, CF/1988, regulamentadas pela Lei Complementar nº 97/1999 e pelo Decreto nº 3.897/2001. O Exército – a Força Terrestre – poderá ser utilizado em operações de Garantia de Lei e Ordem, com base no art. 142, CF/1988, apenas por determinação expressa do Presidente da República, sede na Lei Complementar Nº 97/1999 e Decreto nº 3.897/2001. No parágrafo 1º do art. 15, LC 97/99, fixa-se a competência do Presidente da República para a tomada de decisão de emprego das Forças Armadas, seja por iniciativa própria ou atendendo pedido de qualquer dos poderes constitucionais, através do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Poder Judiciário, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados, pelo Poder Legislativo. Em seguida, o Ministro da Defesa irá determinar o emprego do Exército em operação de âmbito interno. Base no art. 15, §2º, LC 97/99, a atuação das Forças Armadas na operação de Garantia de Lei e Ordem deve ocorrer de acordo com as diretrizes determinadas no ato do presidente da República.

Afora essas previsões legais, não há outros instrumentos dentro do Estado de Direito que regulamente uso de Forças Armadas para intervenções ou operações de qualquer natureza em território nacional.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro : exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Decreto no 3.897. 3.897. . 24 ago. 2001.
Lei Complementar 97. 97. . 9 jun. 1999.
SARAIVA, Wellington Cabral. “Intervenção militar constitucional”
SILVA, Fernando Carlos Santos Da. Aspectos legais do emprego do exército na garantia da lei e da ordem. Âmbito Jurídico, [s. l.], v. IX, n. 30, 2016.

Sobre oprimidos e opressores

Existem alguns conceitos importantes de abordarmos para responder tuas perguntas. Primeiro, é um erro de interpretação bastante comum utilizar o argumento de que se determinado grupo não é contemplado, há discriminação. Isso não é razoável. É preciso ter claro que dentro das sociedades existem grupos que são privilegiados, que dominam o sistema e impõem regras e controles sobre outros grupos. Convencionou-se chamar, dentro das ciências sociais – as teóricas e as aplicadas – o grupo que domina de “opressor” e o grupo que é dominado de “oprimido”.

equalityDo ponto de vista racial, por exemplo, não existe racismo de negros contra brancos. O racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, devem existir, necessariamente, relações de poder. Negros não possuem poder institucional para exercerem racismo. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui (RIBEIRO, 2012). Para que existisse racismo reverso, deveriam ter existido navios branqueiros, escravização de brancos, negação de direitos a essa população.

O mesmo raciocínio se estende à população homoafetiva e transexual, com nuances próprias a cada recorte social que se escolher.

A morte de transexuais não causa comoção, porque a nossa sociedade as vê como menos que humanas. Elas carregam muitos estigmas e sofrem com diversas discriminações, no que se convencionou chamar de discriminação interseccional. São mulheres, transexuais e, em sua esmagadora maioria, segundo dados da Universidade de São Carlos, estão na prostituição. Não por escolha, mas pq não há espaço para elas no mercado de trabalho formal. As pessoas trans ainda sofrem mais expulsão de casa, rejeição pela família, violência dos parceiros e de estranhos, além de não terem nas escolas um ambiente seguro e saudável. Não é à toa que o índice de escolaridade entre pessoas trans seja tão baixo. Sofrem ainda com uma série de violações aos Direitos Humanos, como a negação à própria história, negação de identidade, discriminação com base em elemento anatômico, para ficar apenas nos mais óbvios.

Ora.

É claro que a nossa sociedade só enxerga essas mulheres como objeto de fetiche sexual, com um grau de objetificação que vai muito além da mera relação sexual: existe um fetiche de dominação tão completo que inclui violar, bater e até destruir. A transexualidade ainda é considerada uma doença, em uma patologização que é muito mais ideológica, do que médica.

Existe uma necessidade enorme de discutir e estudar a questão trans, pois essa é a única forma de avançarmos na garantia de direitos para esses cidadãos e cidadãs.

Abordando especificamente a questão homossexual, heteros são mortos por serem heteros? São seguidos por seguranças de lojas? São acusados de pedofilia congênita? Existe uma hegemonia do grupo de orientação sexual heterossexual, que nega direitos a uma parcela da população. Essa parcela, de orientação sexual homoafetiva, reivindica direitos que lhes são negados, não privilégios. Casar, ter o direito de deixar sua herança para o cônjuge sobrevivente é um direito, não um privilégio. Privilégio é o não-pagamento de impostos pelas igrejas, por exemplo.

Em artigo, LOREA (2006) utiliza “um conceito de cidadania sexual calcado no direito à liberdade do pleno exercício da sexualidade, na perspectiva dos direitos humanos. A pertinência dessa questão está diretamente ligada ao fato de que a resistência ao acesso ao casamento diz respeito à discriminação por orientação sexual, haja vista o fato de que o acesso ao casamento tem sido negado a gays e lésbicas, categorias de pessoas que, por isso mesmo, não têm podido exercer plenamente a sua cidadania.

A diversidade sexual encontra amparo legal no artigo 3º, da Constituição Federal – “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” –, bem como no seu artigo 19, que prevê: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.

Assim, primeiramente, devemos estabelecer se é possível ou não, à luz da Constituição Federal, estabelecer um tratamento jurídico diferente às pessoas cuja orientação sexual está voltada para alguém do mesmo sexo. Para que a lei não incorra em discriminação que viole os princípios da Constituição Federal, necessariamente deve justificar eventual tratamento diferente, sob pena de incorrer em um tratamento desigual, portanto passível de ser questionado à luz do princípio da igualdade – estampado no caput do artigo 5º, da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.”

Já IRIGARAY e FREITAS (2011), demonstram que “historicamente, os homossexuais de ambos os gêneros, assim como as outras minorias, têm sido alvo de atitudes discriminatórias e, não raramente, punidos de diversas formas: multas, confinamento em prisões e campos de concentração até a castração e torturas (ADAM, 1987). Ainda hoje, essa minoria continua a ser alvo de preconceito e atitudes discriminatórias. Por exemplo, nos Estados Unidos, os índices de agressões verbais e físicas a lésbicas e gays são muito superiores à média nacional quando comparados a outras categorias (MEYER. 1995, 1995); no Brasil, a cada três dias um homossexual é assassinado em virtude de sua orientação sexual (MOTT, 2006). Pesquisa realizada, no Rio de Janeiro, entre 2003 e 2004, com 416 gays e lésbicas residentes na cidade, revelou que 60% dos entrevistados já haviam sido vítimas de algum tipo de agressão motivada por sua orientação sexual (GUIMARÃES, 2007) e todos, em unanimidade, relataram já ter vivenciado ou presenciado situações de intolerância e violência – psíquica ou física – em seus lares, escolas ou ambientes de trabalho pela mesma razão.”

Para FLEURY e TORRES (2007), “Estudos a respeito do preconceito e da discriminação realizados em vários países demonstram que esse fenômeno vem assumindo formas cada vez mais sutis. Este trabalho insere-se nesse campo de estudo e investiga os efeitos da orientação sexual no processo de infra-humanização. Dele participaram 135 estudantes de pós-graduação na área de recursos humanos. A eles era solicitado que respondessem um questionário no qual avaliavam indivíduos homossexuais ou heterossexuais, atribuindo-lhes traços naturais e culturais, objetivando verificar a presença do processo de infra-humanização no preconceito contra os homossexuais. Diferentemente de outros estudos na área, os resultados indicaram que o preconceito contra os homossexuais se expressa de forma mais sutil que flagrante, apresentando uma maior atribuição de características positivas para o grupo majoritário e não se diferenciando em termos de atribuição de características negativas para o grupo minoritário. Esses resultados são discutidos, ressaltando-se a importância de mais estudos sobre o tema, tão pouco estudado por psicólogos sociais.”

Desse modo, é forçoso reconhecer que os heterossexuais não são um grupo oprimido. Ao contrário, trata-se de um grupo opressor. No plano das políticas de redistribuição, políticas de justiça e políticas afirmativas, existe o fundamento básico: a identificação dos grupos em situação de vulnerabilidade, e na atual situação, aqueles que estão em maior situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, alinhar-se ao orgulho hetero, ou hetero friendly, é alinhar-se ao grupo opressor, emprestando a ele apoio em suas ações. Pelo contrário, devemos atacar esse modelo, promovendo a inclusão dos grupos excluídos e combatendo o problema institucionalizado. É importante entender que a disputa vai muito mais além do que discussões teóricas. Pessoas são assassinadas e espancadas todos os dias. Somos o país campeão em violência contra a população LGBT no mundo.

Vou responder ao outro ponto – sobre devermos “fechar os olhos” para as diferenças como estratégia de inclusão e eliminação da discriminação – em outro post, pois esse está longo. Adianto, no entanto, que essa estratégia, que foi adotada ao longo dos séculos 19 e 20, foi contestada e refutada a partir de estudos oriundos dos USA nos anos 1950 e 1960, sendo adotada estratégia de igualdade material – tratar os diferentes como diferentes, na medida de sua desigualdade.

Concluo, então, que excluir os heteros da frase não é uma discriminação inversa, mas uma atitude que aponta para a inclusão do grupo minoritário.

Fontes:

» http://jus.com.br/artigos/21152/analise-das-acoes-afirmativas-a-luz-do-principio-da-igualdade

» http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/racismo-reverso-e-a-existencia-de-unicornios-205.html

» http://carlosorsi.blogspot.com.br/2012/11/a-falacia-da-falsa-dicriminacao.html

» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2006000200009&lng=pt&nrm=iso

» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-92302011000400004&lng=pt&nrm=iso

» APPIAH, Kwame Anthony. Morality : aid, harm, and obligation – Dignity and global duty. Boston University Law Review, v. 90, n. 2, p. 661–675, 2010.

» DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Critical race theory: an introduction. 1a ed. New York: New York University, 2001.

» GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, p. 269–287, 2006.

» GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 47, n. 1o, p. 9–43, 2004.

» MAGALHÃES, Leslei Lester dos Anjos. O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida. São Paulo: Saraiva, 2012. (Série IDP).

» NEVES, Marcelo. A Força Simbólica dos Direitos Humanos. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 4, 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 12 mar. 2015.

» TORRES-PARODI, Cristina; BOLIS, Mónica. Evolución del concepto etnia/raza y su impacto en la formulación de políticas para la equidad. Rev Panam Salud Publica/Pan Am, v. 22, n. 6, p. 405–416, 2007.

Limites impostos pela Laicidade pluriconfessional

05-Estado-LaicoO Brasil é um Estado Laico, por força do artigo 19 de nossa Constituição. Essa afirmação, no entanto, deve ser desdobrada nas diversas esferas do Poder Público e nas relações deste com os cidadãos em uma República. Mais do que um Estado Laico, devemos ter um Direito estritamente laico, pois o Direito é a maior expressão do Estado. Para que o Direito seja laico, não basta que a Lei assim o proclame: ele deve ser laico quanto às fontes, quanto ao seu conteúdo e, principalmente, quanto aos órgãos competentes para o desempenho das funções estatais(1).

Em um Estado Democrático de Direito, todo o poder emana da vontade do ser humano e não da ideia que se possa ter sobre a vontade de pretensos deuses ou de seus autoproclamados sacerdotes. Essa separação entre o Estado e a Igreja está na base da fundação do Estado Moderno e na perseguição da construção de um Estado com garantia de liberdade religiosa nas esferas pública e privada, em cuidado à cláusula democrática. Não é suficiente a garantia da liberdade de culto e a proteção de suas liturgias, nem a vedação de relações diretas entre as esferas governamental e religiosa para que um Estado seja definido como laico; Para tanto, é imprescindível que as normas produzidas sejam leigas, e que as instituições estatais funcionem e suas autoridades pratiquem atos com total independência em relação às crenças que se manifestem no país (COUTINHO, 2011).

Nesta perspectiva, uma autarquia, portanto órgão estatal, pertencente ao corpo do Estado Brasileiro, tem o dever legal, imposto pela laicidade do Estado, de abster-se de orientações religiosas; quaisquer que sejam as crenças de seus membros, não podem essas crenças misturar-se à prática profissional de todos e de cada um, sob pena de ferirmos o princípio da laicidade.

Todos os cidadãos têm o dever moral de guiarem-se pela razão pública, mas os servidores do Estado têm dever cívico e jurídico de fazê-lo (2). ZYLBERSZTAJN (2012), ainda aponta a consideração sobre a legitimidade temática da religião ao atuar em ações que não são diretamente vinculadas à questão da liberdade religiosa. A atuação nestas esferas não religiosas, demonstra a autora,  talvez se deva a hipótese (errada) de que a opinião de uma religião sobre os valores sociais seja juridicamente relevante. Não são. Há um entendimento de que a presença religiosa na esfera pública apenas pode impactar na vida de todos os cidadãos se estiver de acordo com as razões democráticas (3).

Muito se usa também o argumento de que “o Estado é Laico, mas o povo é religioso”. Qual o interesse posto? Segundo CUNHA e OLIVA (2014), o que se disputa e pretende é manter a tutela religiosa sobre o povo, assegurando-se que o Estado seja usado por instituições religiosas para exercício desta tutela. Na verdade, o que o Estado Laico garante é que questões sejam debatidas por toda a sociedade – e não por apenas uma parte dela -, para que determinada legislação ou norma reguladora profissional seja mantida ou alterada, sem interdições que convêm a apenas uma parte dos cidadãos, os adeptos de certas religiões (4).

Em recente artigo, BIROLI (2015) destaca que há um ataque orquestrado contra o que foi chamado de “ideologia de gênero”, uma tentativa de “frear e interromper a consolidação de valores básicos da democracia, como o tratamento igual aos indivíduos independentemente do que os singulariza e a promoção, no ambiente escolar, do respeito à pluralidade e diversidade que caracterizam as sociedades contemporâneas.” (5)

Separar o Estado da religião é uma solução que tem se mostrado capaz de garantir a ampliação de direitos para essa diversidade, pois permite que os diversos grupos sociais se apresentem na tessitura social sem que o Estado promova a superioridade de um grupo em relação a outro. No momento em que uma religião – budista, muçulmana, cristã – orientar políticas públicas do Estado, perde-se a ideia de que os indivíduos possuem igual respeito e igual valor. Pior, admite-se que alguns valores, crenças e estilos de vida fariam de alguns um “povo eleito”. A democracia não se coaduna com visões exclusivistas e excludentes como essa (6).

BIROLI (2015) ainda adverte que as ofensivas contra a “ideologia de gênero” são parte de uma visão parcial, que busca naturalizar crenças particulares de alguns – leia-se grupos religiosos cristãos – apresentando essas visões como se universais fossem. Opõe-se uma falsa dicotomia, com um lado apresentado como natural (a “verdade”) e outro como ideológico (o “falso”).

No entanto, é importante ressaltar o entendimento de que “ideologia corresponde a um conjunto de sentidos, de ideias, que constituem nossa relação com o mundo e fazem de nós quem somos. (…) pressupõe o entendimento de que a relação com o mundo social é sempre atravessada por sentidos que nos precedem, e que estão em disputa. Não há momento ou circunstância em que a realidade se dê a ver sem estar impregnada de significados e de valores. É numa realidade que não é nem falsa nem verdadeira, mas socialmente significada, que nos constituímos como indivíduos.” (7)

Se o Estado brasileiro proclama, em seu art. 3º, inciso IV, da CF/88, a determinação de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, como ignorar que o ensino da igualdade entre os gêneros, do respeito à diversidade religiosa, do combate ao racismo, do combate à homofobia e à transfobia é condição sine qua non para atingir plenamente o comando constitucional?

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(1) Neste sentido, ver COUTINHO, Simone Andréa Barcelos. O Estado laico e a reforma do Código Eleitoral. Jus Navigandi, n. 3046, 2011.

(2)  ZYLBERSZTAJN, Joana. O Princípio da Laicidade na Constituição Federal de 1988. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

(3) Op.cit. p.96-97

(4) CUNHA, Luiz Antônio; OLIVA, Carlos Eduardo. Sete Teses Equivocadas sobre o Estado Laico. In: Em defesa do Estado Laico. 1a. ed. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2014, v. 1, p. 207–227. 2v.

(5) BIROLI, Flávia. O que está por trás do boicote religioso à “ideologia de gênero”. Revista Forum, 2015. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2015/06/30/o-que-esta-por-tras-do-boicote-religioso-a-ideologia-de-genero/&gt;. Acesso em: 26 jun. 2016.

(6) Nesse sentido, Op. Cit., 9º parágrafo.

(7) Op.Cit. 11º parágrafo.

Feminismo prá que? Ou porque David Coimbra é um imbecil

Nearly half of all British women murdered by men died at the hands of a partner or ex-partner, a new study has revealed.

Some 694 women were killed by men over a period of four years, and of those, 46 per cent were killed by someone they had had a romantic relationship with.

“Cerca de metade das mulheres britânicas assassinadas por homens morreram nas mãos de seu parceiro, ou ex-parceiro, um novo estudo revela. 694 mulheres foram mortas por homens no período de quatro anos e, dessas, 46% foram mortas por alguém com quem elas haviam tido uma relação romântica”

Íntegra: http://www.independent.co.uk/news/uk/crime/half-of-all-british-women-murdered-by-men-killed-by-partners-10042065.html

Processo internacional de Direitos Humanos

O Direito Internacional Público (DIP) tem evoluído muito nas últimas décadas, principalmente em face do processo de globalização que atinge todos as países. Notadamente, os Direitos Humanos encontram-se cada vez mais protegidos e promovidos pelo DIP, estabelecendo um núcleo de direitos cogentes, mesmo para os Estados não contratantes de tratados e convenções internacionais. Mais do que isso, “os direitos humanos compõem os princípios gerais do Direito Internacional, uma vez a mesma Corte Internacional de Justiça reconheceu, no Parecer Consultivo relativo à Convenção de Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, que os princípios protetores de direitos humanos daquela Convenção devem ser considerados princípios gerais de Direito Internacional e vinculam mesmo Estados não contratantes.”

RAMOS (2012) reforça que em 1996 “a Corte Internacional de Justiça voltou a enfatizar que os princípios de direito humanitário são princípios elementares de humanidade, pelo que todos os Estados devem cumprir essas normas fundamentais, tenham ou não ratificado todos os tratados que as estabelecem, porque constituem princípios invioláveis do Direito Internacional Consuetudinário.”

Nesse sentido, TAIAR (2009) afirma que “Entretanto, com a instituição do direito internacional dos direitos humanos, o ser humano adquiriu a condição de sujeito de direitos, não apenas nos limites territoriais de seu Estado, mas frente a toda a comunidade internacional, e, desse modo, os Estados não mais podem justificar a violação de direitos humanos em seu espaço interno sob o argumento do exercício da soberania. O indivíduo, enquanto sujeito de direitos no âmbito da ordem jurídica internacional, recebe a garantia de proteção do direito internacional público, que não conhece delimitação territorial.” Mas é preciso aumentar os canais de diálogos interconstitucionais e transconstitucionais, de modo que as fontes do DIP realmente gerem incremento de garantia de Direitos Humanos. Caso contrário, corremos o risco de que as normas de Direito Internacional sejam vistas como de mero conselho ou exortação moral. Também é preciso municiar os operadores com os instrumentos necessários para evocar e aplicar os princípios gerais de Direito Internacional, sem que seja preciso a internalização dos dispositivos.
RAMOS, André de Carvalho – Processo internacional de direitos humanos – 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012. p. 32 e 33.
TAIAR, Rogerio. Direito internacional dos direitos humanos: uma discussão sobre a relativização da soberania face à efetivação da proteção internacional dos direitos humanos. Doutorado em Diretos Humanos, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2009.

Colunistas

No domingo, na carta do editor, Zero Hora informava mudanças nos colunistas do jornal. A informação constante no post do blog do editor era que Moisés Mendes – considerado por uma parcela dos leitores como o melhor colunista do jornal – não iria mais escrever às terças e sextas. E só. Dando a entender que Mendes não iria mais escrever no jornal.
A reação foi imediata. Vários comentários lamentavam a saída de Moisés, tomando-a por incompatível com a alegada qualificação de conteúdo (a bem da verdade, alguns leitores saudaram a saída dele, acusando-o de “esquerdista”).
Ontem à noite, recebi da editora Lúcia Pires um email cordial, informando que Moisés não vai deixar de escrever no jornal. Pelo contrário, irá ter quatro colunas semanais, ao invés das três atuais.
Só tenho a louvar a decisão da RBS de valorizar Moisés. Fui repórter na Economia de ZH, qdo Moisés, Bella, Christianne Schmitt, Eduardo Tessler comandavam a barca e posso testemunhar que ele sempre foi um exemplo de jornalista e ser humano.
Parabéns à Zero Hora pela decisão!

Porquê falar

É claro que várias pessoas acham ativistas chatos. Talvez porque uma característica em comum seja não deixar passar os acontecimentos. Militar por uma causa consiste, em grande parte, em dar um passo adiante e dizer “não, não está tudo bem”. Não contemporizar, não relevar.

Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar…

Martin Niemöller – 1933

E há vários motivos para isso. Cada vez que calamos, contribuímos para que o ofensor se sinta mais a vontade, que tenha a certeza de que pode agir com violência, com opressão, e que nada acontecerá.

Ele se empodera. Repete e amplia suas ações.

Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor.
Desmond Tutu

Quando um número suficiente de pessoas se levanta pelos seus direitos e afirmam que não irão ceder, a mudança começa. A mudança que precisamos na nossa sociedade.

O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… O que me preocupa é o silêncio dos bons.
Martin Luther King

Por isso ando monotemático, falando de Direitos Humanos, seja pela Anistia Internacional, seja pela Liga Humanista, seja condenando veementemente o caso bolsonaro. Se não seguirmos pressionando o Congresso, nada vai acontecer com ele. De novo.

E essa impunidade tem arregimentado mais gente. Muita gente. A grande maioria sequer sabe o que Direita e Esquerda, ou Direitos Humanos, ou Devido Processo Legal. Mas isso pouco importa a eles (sobre o episódio, recomendo a leitura do post de Wilson Gomes, aqui).

Não estamos mais nos anos 1960, não temos mais uma Guerra Fria em andamento. Mas assim é a história: ela anda para a frente. E nesses anos, à frente e à direita: Rússia, CIA torturando institucionalmente, UKIP e suas leis anti-imigração… os exemplos são muitos e horríveis.

Será que teremos um novo ovo da serpente?

A ver…